As muitas formas de uma Maria existir: conheça o livro de estreia de Iara Sydenstricker, lançamento da editora Penalux

“Marias de Pedra e Mel”, livro de contos de Iara Sydenstricker, apresenta uma escrita contundente ao retratar personagens femininas em busca de libertação

“(…) A autora aponta a dureza e a violência que recaem sobre as mulheres num mundo misógino, machista e que não oferece segurança nem garantias para nós, principalmente as das classes menos abastadas. As Marias protagonizadas não estão presas à imagem cristã das santas. Nomeadas de uma forma sagrada, são guerreiras. O olhar da narradora é uma ferramenta de ruptura, de tentativa de mudança do contexto de injustiça social.(…)”

Ninfa Parreiras (professora, escritora e psicanalista), na orelha do livro

Quando criança, Iara se fascinou diante da beleza de um copo de vidro ensaboado e lavado por ela mesma na pia da cozinha. O momento pueril lançou a menina numa espécie de iluminação e ali ela intuiu que queria ser empregada doméstica quando crescesse. Ao compartilhar a ideia com os adultos ao redor foi desautorizada a seguir com o plano, taxado de esquisito pelos familiares. O desconforto do episódio, carregado de simbolismo, atravessa décadas, alia-se a outros sentimentos e vivências, e transborda na escrita de Iara Sydenstricker (@iarasydescritora) no arrebatador Marias de Pedra e Mel, publicado pela editora Penalux. Com 72 páginas, o livro de contos marca a estreia da autora para o grande público.


Marias de Pedra e Mel é formado por nove contos ficcionais, curtos e enxutos. Em cada um destaca-se uma mulher, uma Maria que dá nome ao capítulo. O livro inicia com Maria da Penha e encerra com Maria de Jesus. Cada conto desenvolve uma história única, com início, meio e fim. As tramas revelam violências físicas e simbólicas, abandono, opressão e autoritarismo, mas também a força, sonhos e desejos dessas mulheres. A maternidade e a religiosidade também estão presentes na obra.


“Relaciono a santidade das Marias católicas ao desprezo dado às Marias reais. São, porém, todas Marias, santas e profanas, a carregarem, cada uma, um terço que pode até se desfazer no caminho, mas que jamais as tornará pecadoras devido a esse rompimento. Ao contrário, mesmo desfeitos, seus terços continuam atados às suas mãos. A fé tem mil faces e a força dessas mulheres é prova disso”, declara a escritora.

É preciso ressaltar que essas Marias habitam um mesmo universo, o cotidiano de mulheres relegadas a segundo plano. Iara, ao contrário, lhes dá protagonismo, concede palco para essas personagens desfiarem suas trajetórias e tecerem novos arranjos narrativos. Em alguma das Marias do livro as leitoras (e também os leitores) poderão encontrar sua própria Maria.


A obra também tem mérito pela qualidade da escrita: a composição das narrativas apresenta um repertório textual amplo e diverso, com criação de metáforas originais que colaboram para a estruturação das cenas e fluidez da trama. A sofisticação da escrita sustenta o desenrolar das histórias, contadas em poucas páginas. Cada conto reúne num breve espaço a apresentação da personagem, a problemática, e o desfecho. A costura dos enredos, com caminhos inesperados, e seus desenvolvimentos meteóricos, quebram a expectativa do leitor do início ao fim do livro.


Iara admite a preferência pela escrita mais concisa. “Gosto de textos secos, quase áridos, mas que possam comover e levar o leitor, de alguma forma, a se tocar, a viver emoções próprias e alheias (das personagens). Quando alcanço esse objetivo, me apaziguo”, confessa.

 

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A resiliência e a brasilidade das Marias são comoventes. Algumas, como nós – ou muitas? – guardam mistérios e segredos ancestrais. A sabedoria, nem sempre. A sabedoria está na alma, mesmo que o corpo não a obedeça. Mas quando consegue…

“Uma vez decidida, desfez-se dos massacres de si mesma. Expurgou o que lhe fora imposto e curou-se”.

Ler essas histórias é um grande prazer e uma intensa interrogação: vale a pena decifrar as personagens da Iara Sydenstricker ou simplesmente saboreá-las, com toda a sua doçura e o seu amargor? – Angela Garambone, jornalista

Espírito do tempo: Marias e a inversão do protagonismo na narrativa contemporânea

Marias de Pedra e Mel é singular em sua composição e escrita, ao mesmo tempo em que dialoga com obras contemporâneas. Livros de escritores como Itamar Vieira Junior, Jeferson Tenório, Conceição Evaristo e Eliane Alves Cruz também inverteram os pólos de interesse e trouxeram a periferia para o centro, concedendo a personagens e histórias invisibilizadas desde sempre a ribalta do palco principal.


“Estava a escrever um livro sobre mulheres sofridas que, mesmo assim, seriam capazes de reescrever seus destinos, ainda que pela via do encantamento. Essas Marias encontraram uma forma de revidar, de vingar, de dar o troco e de evidenciar suas recusas à opressão”, afirma a autora.


Seria impossível dissociar a escrita de Iara dos autores citados, e de tantos outros, como Eliane Brum, Marcelino Freire, Marina Colasanti, Octavia Butler, Toni Morrison, Ana Maria Gonçalves e Lygia Bojunga, que a escritora cita como influências diretas em sua obra.


Um passeio em qualquer livraria hoje evidencia o quanto essas obras e autores ocupam cada vez mais espaço nas estantes, e não somente isso, os livros são debatidos em grupos de leitura, escolas, universidades e espaços de literatura, arte e cultura, além de estarem em destaque na mídia, em jornais, revistas, programas de rádio e tvs, e canais especializados nas redes sociais. O tema fervilha e as Marias criadas por Iara também integram esse movimento

Arquiteta, roteirista, escritora : o cotidiano produz inspiração

Iara Sydenstricker nasceu em São Paulo, morou 27 anos no Rio de Janeiro e vive na Bahia há duas décadas. É graduada em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal Fluminense (UFF), sendo também mestre em Planejamento Urbana e Regional por meio da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e doutora em Artes Cênicas pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Atualmente é professora na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, na Cidade de Santo Amaro, a 80 km de Salvador. No entanto, sua experiência profissional é extensa e envolve, além da atuação como docente, trabalhos como arquiteta, roteirista e escritora.


Nos anos 90, Iara conviveu, profissionalmente, com realidades desoladoras em favelas e áreas de risco do Rio de Janeiro. Na Bahia, como professora, vivenciou de perto o cotidiano duro e excludente de pessoas que buscam através da universidade um lugar social mais digno e justo. Essa multiplicidade de funções e experiências estão no cerne da composição das personagens criadas para Marias de Pedra e Mel.


O processo de escrita do livro começou com o conto Maria do Socorro. “Era uma mulher ficcional mas muito próxima de algumas que conheci. Escrevi e reescrevi a história muitas vezes e em dado momento me dei conta de que havia outras Marias a pedir existência. Era preciso colocá-las no papel”, confidencia a autora. O passo seguinte, depois da obra pronta, foi compartilhar a escrita com amigas e amigos próximos, a quem ela faz referência nos agradecimentos. O processo seguiu com a escolha da Editora Penalux para publicar Marias de Pedra e Mel.


Agora a missão da autora é dar asas para a obra pousar em outros territórios. O gesto emblemático vai costurar dois momentos da vida da escritora: o dia em que a menina foi tolhida por manifestar seu desejo de ser empregada doméstica e a estreia do livro em que a Iara, agora adulta, escreve para dignificar as vozes femininas abafadas por tempo demais.

Confira um trecho do livro:

“Quando menina, estupraram sua inocência, sua voz, seu desejo. Cedo entendeu que virgindade é privilégio e que a sua lhe fora negada desde o nascimento. Ficou estéril, mais um motivo para que dela abusassem sem consequências.


Enterrou sonhos à mesma medida que seu corpo foi socado pelo uso diário do pilão e pelas pauladas que recebia. Silenciada pela máscara de ferro sobre a boca, aprendeu a não falar.


Capinou, ensacou, plantou. Lavou, torceu, engomou e passou vestes que jamais usaria. Aferventou o caldo da cana a lhe respingar durante décadas os braços e o rosto espremido pelo horror a que foi exposta. Ainda assim, guiou-se pela crença de que em algum lugar haveria almas como a sua.


Amou o homem que a ela ofertou a única carícia que conheceu. Ele a ensinou a esperançar a morte antes de ser assassinado no tronco. Durante anos, Maria dedicou-se a preparar sua própria cova ao lado da morada do amante. Plantou flores ao redor. Eram as duas mais lindas casas do paraíso, diziam-lhe os mortos, testemunhas dos uivos de dor que ela emitia aos finais das tardes de domingo diante do jazigo.


Forte, dura, resistente, logrou viver muito tempo. Depois, virou montanha.(…)”