Sob o pé de figo
Foi-se como um dia
tudo o que poderia ter sido,
sem motivo.
Até o desenho de nuvens borrado
nas ruas de asfalto da infância.
Foi-se tanta gente
sem ter sido o que queria.
Foi-se o sorriso que acabei de ver,
e o pique esconde da imagem que se escondeu,
para se manter onde ninguém
quer saber.
Foi-se até o que poderia
nunca ter acontecido.
Foi-se o inseto obtuso
que um dia prendi
no potinho de vidro.
Do qual também já haviam partido
algumas azeitonas verdes e miúdas.
Quem se foi em meio a este sol amanhecido?
Foi-se o molho de chaves
que um dia abriram as portas da casa onde nasci,
como um intruso.
Foi-se o seo Emílio da casa da esquina,
foi-se a dona Ondina,
a dona Concheta e tantas
velhas que se foram de tanto ser meninas.
As mãos na enxada capinavam sonhos telúricos,
nas manhãs de sábado.
O rastelo levava apenas as folhas graúdas,
que voltavam a ser terra com o tempo umedecido.
Já a foice, essa nunca existiu completamente,
mas continua ali, pendurada na parede imaginária.
É certo que um dia voltará a ser usada no fim da linha.
E virá como beijo frio de lâmina cega.
Foi-se a chuva,
que vinha chegando.
Foi-se a coisa “quase sem querer”.
Os azulejos grenás e brancos
da área da frente da casa,
o dente jogado pra cima do telhado,
e até o telhado
se fez ausente de amanhã.
Já os canarinhos do reino, soltos,
estes não se foram.
Ainda batem as asinhas por aí,
mesmo mortos e
enterrados sob o pé de figo.
O pé de figo, sim, se foi.
Mas não acreditem muito no que digo.
Eu também já fui.
E o pé de figo, sim,
ainda pode estar vivo,
sem precisar ter existido.
Arames
Atrás de mim
arames farpados dão o tom.
Emaranhados, embaraçam vidas,
mas de forma alguma limitam
o que já sou.
Todos estes rostos em sofrimento
trazem-nos, logo mais adiante,
uma imensidão jamais vista
De medo, esperança e o que mais vier.
Sou exatamente essa menina,
de não mais de quinze anos de idade.
Seguro um bebê no colo
de não mais de um ano e meio, sem identidade.
Como todos aqui
sinto os pés secos,
enquanto congelo o que sobrou do olhar nesse pedaço
de solo, que também é meu,
mas que me negam.
Como tantos à minha volta, sou só.
Estanco os lábios
sem esboçar qualquer sobra de sorriso,
mas não porque precise, apenas porque sumiu do rosto.
E na escuridão da noite órfã, que é de todos,
vi as mesmas estrelas
de todos.
Mas as vejo de uma forma mais clara que eles.
Quando pegarmos a estrada com esse nosso
quase nada a tiracolo
ficarei para trás
para sempre.
Enroscada nos mesmos
arames farpados.
De todos
nós.
Labirinto
Ferida de gente.
Feita de coisas que nos tocam,
agarra-se naquilo que nos salva.
Quando saiu ao sol,
deitou-se ao nosso lado,
no gramado, sem trazer respostas.
Veio como esporos ao vento.
E se decidir partir?
E se partiu entre nuvens?
Cansada de ouvir preces.
desgastada por indiferenças.
leva-nos aos seus labirintos,
faminta como Artêmis.
Testa-nos diante ao desejo de caos.
Respira por nós o cheiro
da chuva por vir.
Mostra os devires
que nos expõem à vida.
Embrulha os homens
em visões de abismo,
e os reconhece
como reflexo nunca visto.
Mantém os olhos abertos
ao nos ver passar.
Voltada às coisas que não vemos.
Socorre-nos, enfim,
de um fim do mundo qualquer.
É sagrada ao buscar perder-se:
aqui, no único tempo que existe.
Sempre a um passo de salvar-se de nós,
a fé deixou-se ir,
sabendo que voltaria: renovada.
Se há de seguir,
que siga.
Nascido em Assis (SP), jan/1973, e morador de Campinas (SP), Maurício Simionato époeta e jornalista. Lançou os livros de poesias “Impermanência” (2012, selecionadopela Secretaria de Cultura de Campinas), “Sobre Auroras e Crepúsculos” (2017,Multifoco), lançado na Bienal do Livro do Rio/2017, e “O AradO de OdarA” (2021,Patuá). Teve poemas publicados em diversas revistas especializadas em literatura e emmais de dez antologias poéticas. Como repórter, foi correspondente na Amazônia portrês anos, sediado em Belém (PA), e tem passagens por diversos sites e jornais. Fez pós-graduação/MBA em Comunicação e Marketing, além de Extensões em História dasArtes, em Gênero, Discurso e Mídia e em Semântica e Linguística Textual. Foi finalistado Prêmio Guarulhos de Literatura 2019 e do Prêmio Off Flip de Poesia em 2021. Éeditor da revista digital ‘URRO – contragolpe cultural’. Desenvolve pesquisa sobreruídos poéticos urbanos no Mestrado em Divulgação Científica e Cultural noLabJor/IEL, da UNICAMP.
Ao menino refugiado
Hoje,
cruzei mais uma fronteira,
sem querer.
Alguém me puxou por cima da cerca.
Alguém me segurou do outro lado.
Alguém quis me jogar de volta.
Aqui,
pessoas carregam sacos plásticos com miudezas sem sentido,
pedaços de coisas mudas,
e malas esfarrapadas com o que restou da vida.
Nestes dias,
os abraços
são mais dolorosos,
porque há o desabraço.
Nestes dias,
os olhares
tornam-se um pouco mais tristes,
porque há o desolhar.
Nestes dias,
o aperto no peito
aperta diferente.
Pois há também
a indiferença.
Nestes dias,
o destino rejeita-nos de antemão.
Ar revolto
Os eucaliptos
Aplaudiam a noite
Porque esta lhe
Trazia o céu estrelado, às vezes.
E era por isso que desafiavam a gravidade.
Resvalavam folhas entre si
Para fazer ventar
A madrugada para debaixo de suas raízes
E na manhã seguinte,
Talvez eterna,
Faziam nascer novamente o ar revolto,
aos pés
Daquilo que os movia.
E o faziam sem ao menos
Saber o que é o amor
Assim, jamais se esqueceriam de ser
O que sempre foram.
Sabiam que o que lhes restava
era ser
E o faziam para desgravitacionar
A existência.