Contemporâneos LITERATURA  Perfil-1-285x450 O Tempo, conto de Adriano Espíndola

Adriano Espíndola Santos é autor de “Flor no caos”, “Contículos de dores refratárias”, “o ano em que tudo começou”, “Em mim, a clausura e o motim” e “Não há de quê”. Advogado. Mestre em Direito. Especialista em Escrita Literária e em Revisão de Textos. Membro do Coletivo Delirantes. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto. instagram.com/adrianobespindolasantos/

O Tempo

Eu pensei, ingenuamente, que teria definições para tantas dúvidas. Um amontoado de questões está para ser elaborada pela minha mente; permanecem, todas elas, latejantes, quase a fervilhar, sem resolução. A mais cruel é sobre o abandono de Graça, minha mãe. Com cinco anos, voltando da escola com minha vó, percebemos a casa vazia. Vó chamava por Graça, e a voz se perdia na imensidão. Um pouco mais, vó estava desesperada, correndo pela casa, com as mãos na cabeça: “O que será de Graça bandoleira?”. Sim, seu apelido, por gostar muito de sair e farrear, era bandoleira. Debandou-se, sem eira nem beira. Estranho mesmo é por que deixou praticamente todos os seus pertences no quarto. Não levou o bem de que mais gostava: a televisão, amiga das horas ociosas. Nem uma carta restou. Vasculhamos toda a casa, e nada de sinais. Minha avó, já abandonada pelo destino, passou seis dias e seis noites acamada, chorando, sendo amparada por mim, que lhe dava o de-comer, frutas e caldos preparados por nossa vizinha. Depois, tive de cuidar da casa. Aprendi a varrer, lavar as roupas e buscar água para abastecer as nossas reservas. Foram dias infernais; eu imaginava que vó poderia morrer, e aí eu ficaria definitivamente só no mundão. Mas não; com o tempo, os dilemas foram se acomodando. Fato é que vó não tocava no nome de Graça, e eu também não poderia pronunciá-lo. Num dia, fui advertido, com vigor, que “Este nome não se pronuncia mais aqui”. Vó não estava calejada com o abandono, como podia se esperar depois da partida do marido e da filha. Vô se mandou possivelmente para Fortaleza, nos idos de 90, “por um rabo de saia” – vó dizia. Mas foi assim, sem avisar – e Graça fez parecer que era uma sina da família; tanto que vó me repreendia quando falava em viajar, estudar fora. Os meus sonhos foram rompidos, porque não podia deixá-la “só”. Quando comentei que queria fazer uma faculdade, ela disse que era “bestagem”, que eu tinha mesmo era de trabalhar na enxada, como os nossos antepassados. Que faculdade não era para “gente como a gente”. Que eu era um desnaturado por pensar assim. Foi um banho de água fria. Tive que me contentar, por anos, com as leituras de meus poucos livros. Só em 2010, com a sua morte, resolvi sair da cidadezinha e morar em Fortaleza, para trabalhar. Arrumei um serviço de zelador, que foi me mantendo enquanto estudava à noite, para recuperar o tempo perdido. Foram sete anos até conquistar o diploma de Filósofo. Sou um ser curioso, e ainda procuro apaziguar as minhas inquietações. O tempo se encarregou de me ensinar a viver, como dá. Hoje levo a vida guardando e respeitando a memória de vó Altina e seguindo o brilho dos olhos de Artur, meu filho. Mas as questões ainda me consomem: por que mãe Graça me abandonou? Por que vô Araújo largou a família? Seria eu um filho/neto desnaturado? O que me falta para ser feliz? “A vida é uma causa perdida”.