A personagem Cassandra, que espera o leitor nas primeiras páginas de “Onde as verdades nascem” (132 páginas, editora Patuá), obra de estreia do paulista Júlio César Bernardes (@jcbernardess), enuncia um traço que acompanhará a obra até o final: o mistério. Apesar da alusão à tragédia grega, em que Cassandra é amaldiçoada a prever o futuro sem que jamais acreditem em suas palavras, o conto que abre o livro explora um contorno bastante distinto: ao situá-lo em uma cidadezinha interiorana, cenário que percorre o restante da obra, o autor coloca em perspectiva a temática do Brasil Profundo, muito explorada por autores como João Guimarães Rosa.
“Onde as verdades nascem” é composto por nove contos, cada um com uma história única, sem relação com as demais. A forma de contar também muda: embora a maior parte dos textos seja narrada em terceira pessoa, alguns dos contos também trazem narradores-personagens.
Os fios que entrelaçam os contos são a atmosfera insólita das narrativas, que oscilam entre o absurdo e o terror, e o fôlego da escrita de Bernardes, aspectos que flertam com escritores latinoamericanos como Gabriel García Márquez, Samanta Schweblin e Jorge Luis Borges, citados pelo autor como referências. Apesar disso, Bernardes não rotula seu estilo de escrita. “Já escutei muito os termos insólito, regional, fantástico, absurdo, realismo mágico, e acho que todos estão certos, mas também não tanto”, pondera.
A obra se destaca pela diversidade de personagens e pelos diálogos entre imaginários individuais e coletivos, que ocorrem sobretudo quando universos esotéricos, habitados por cartomantes, leitores de sonhos, gurus e benzedeiras, contrastam com problemas mundanos, como a influência de famílias tradicionais sobre o poder público e a impotência frente a uma burocracia por vezes ineficaz. Entre esses extremos, pessoas comuns são, por acaso ou destino, arremessadas para um lugar entre o crível e o que foge à lógica, limiar que ganha materialidade na medida em que os personagens são construídos de maneira complexa, sem maniqueísmos.
Os contos de “Onde as verdades nascem” também sobressaem por sua ambientação, que se relaciona intimamente com a biografia de Bernardes. Nascido e criado no interior paulista, o escritor se deparou com as disparidades regionais e geográficas quando se mudou para a capital. “Os primeiros contos que escrevi no mesmo estilo dos que compõem o livro surgiram do meu divertimento com o fato de que amigos aqui de São Paulo nunca sabiam no que acreditar quando eu contava histórias do interior. Juravam que era mentira algo que lhes parecia absurdo e que para mim, no entanto, era banal, e tomavam por verdade, sérios e surpresos, o que eu inventava sem pudor”, relata.
Do mesmo modo, a sua mudança para a cidade de São Paulo motivou uma série de reflexões, presentes na obra. Para Bernardes, hoje vigoram em grandes cidades circuitos de poder antes normalizados e evidentes apenas fora dos grandes eixos urbanos. “A minha vida em São Paulo coincidiu com um momento político em que gradativamente nós ouvimos mais sobre o colapso das instituições, sobre os poderes não estarem funcionando como deveriam, e eu só conseguia (e ainda só consigo) me perguntar: que instituições e poderes são esses que um dia funcionaram, e quando? Por onde passei, nunca vi”, questiona.
Nesse contexto, os temas centrais de “Onde as verdades nascem”, para o autor, são a erosão das instituições, pós-verdade e disputas de narrativas. “Em vez de escrever contos que fossem só anedóticos, resolvi explorar o pitoresco como recurso para argumentar que a ruptura apontada das instituições é a realidade perene e longeva da maior parte do país”, ressalta o autor, e segue: “O espanto se dá porque uma meia dúzia de cidades que se julgavam mais avançadas se viram sujeitas às mesmas forças que regem o interior, do qual tentavam se distinguir”.