Poemas de Luiz Carlos Quirino
Poeta de Porto Alegre, Luiz Carlos Quirino nos oferece um pouco de sua poesia em textos onde omite o título e deixa as imagens construídas falarem por si.
mais rente ao couro
a lâmina raspa as escamas
para que eu possa me ajustar
à nova pele
de novo
e outra vez o corpo
coberto de rachaduras
na cabeça o diadema de ervas
ruins e nunca mais
o ouro
apenas a visão noturna
das fraturas por onde
passo no escuro
ou testo
nas ruas despovoadas
meu esquecimento
[…]
na maré vazante sonhei
com a possibilidade de travessia
junto aos peixes e os deuses
num aquário
sufocamos rente ao vidro
muito mais mudos
e se nadássemos
com os pés ao contrário
para que lado iríamos
ou
nadaríamos em círculos
rente às bordas
e a curvatura de nossas costas
denunciaria a tentativa de fuga
e as escamas denunciariam
* * *
o pensamento em sua morada
ainda não funda o primeiro princípio
– destruição e arkhé do próprio
rastro –
nem a voz e seu alcance limitado
o princípio se faz ao meio
até o fim
nascer é tão anacrônico
quanto impossível
melhor seria desistir
de riscar a noite em
fagulha descomedida
tenho todas as idades
menos o tempo que me
resta
e é preciso procurar entre
os escombros algum sinal
tenho todas as cidades na
poeira dos pés deformados
pela lucidez
e já nem lembro quando a
humanidade deixou de existir
o macunaíma entre ruínas fala
do país do futuro que nunca foi
que refina suas mnemotécnicas
de destruição entre os expirados
os quase-mortos
um quase-vivo
* * *
palavras proferidas
sob sol intenso
são sempre perseguidas
por uma sombra gigantesca –
tamanho que não consegue ter a voz
do animal que sonha acordado
e pensa viver entre os bípedes
e se projeta contra a sorte
rompendo o arame farpado
que o cerca
fazendo do urro
a brutalidade da luta
na densidão sufocante
do que não pode ser partilhado
nada importa a não ser
a valia do afeto
dos corpos que se encontram
e já são outros abaixo dos ossos
distantes da orla que se distancia
e os entrega uns aos outros
ave maria dos afogados
na última gota de vida perdida
nas frestas da terra rachada
ave maria sem asas que
bica o grão oneroso e estéril
dos mentirosos – já que
todas as letras têm lastro
* * *
dócil à voz do ser
– escoa todo
o pensamento nos
corredores anacrônicos
tão largos quanto as
artérias da metrópole
em cada esquina um acidente
bloqueia o fluxo das horas
exaure
minha
gramática
de aporias
e apostas no
amanhã
atrás de cada janela iluminada
um duplo do que poderia ter sido
preso ao anagrama da vida provável
como léxico das coisas do mundo
ontem
após
ontem
agora conto apenas com o trabalho
de minhas próprias mãos: do
ser no tempo – sein und zeit
atrofiado entre os dedos
e os dentes cerrados
machucam a voz
– logos do corpo
sentado à espera
* * *
reconheço as estrias –
como moldam as vogais no fogo
na ferida que não pode ser dita
sem ferir a boca
nos cardumes do sentido
se projetando contra as pedras
represando a língua
espaço vazio entre
mim e a voz
– animal sobre a mesa
vertigem da lembrança
pena apenas do futuro
– casa do esquecimento
e dano – enigma do mal
toalha sobre a mesa
sobre o assoalho em chamas
antes fosse sonho
o que não posso dizer
sem acordar
dento do sonho
ao infinito
e outra vez
Sobre o autor
Luiz Carlos Quirino nasceu em Porto Alegre, Brasil. Formado em Ciências Sociais, mestrando em Educação. Autor de poemas e contos. Publicou em 2017 uma plaquete, contendo 20 poemas, intitulada Seremos destruídos pelo princípio da não contradição; em 2020, Na casa invadida pela enchente à noite – levitamos; possui poemas publicados em sites e revistas eletrônicas do Brasil e de Portugal.