Entre luto, memória e pertencimento: Tatiana Lazzarotto estreia com livro que atravessa a perda paterna

Obra premiada pelo ProAC/SP, “Quando as árvores morrem”, publicada pela Editora Claraboia, marca a estreia de Tatiana Lazzarotto na ficção

Quantas lembranças atravessam um corpo enlutado? O que fazer com o desejo de nossos mortos? Em sua estreia, Tatiana Lazzarotto nos apresenta, em prosa poética, o desenrolar de uma notícia de morte. É também uma história sobre um pai, uma filha e uma árvore. Um deles está morto. Os outros dois terão de sobreviver. 

O romance “Quando as árvores morrem” (Editora Claraboia, 164 p.) acompanha o desenrolar de uma notícia de morte e as memórias que atravessam o corpo de quem fica. A obra foi uma das vencedoras do edital ProAC de obras de ficção, promovido pela Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo.

Na história, narrada em primeira pessoa, a protagonista perde o pai de forma repentina e retorna a Província – cidade fictícia –, para atender aos desejos deixados por ele: recuperar a casa da família e garantir que a velha árvore do quintal, já condenada, não seja derrubada.

Ao mesclar a experiência do luto com as memórias de infância, a narradora relembra a trajetória do pai, que deixou a profissão de comerciante quando ela e os irmãos eram crianças, para se transformar em Papai Noel profissional. O romance busca esmiuçar um personagem pouco visível na literatura, além de lançar um olhar sobre os milhares de homens que encarnam o personagem mítico no final do ano: de que maneira esses profissionais se relacionam na intimidade, com suas famílias? 

É a partir das memórias, suscitadas pela casa vazia e pelo próprio estar de abandono, que a narradora, já adulta, desconstrói o pai morto. “A autora nos prende nessa jornada em busca da permanência. ‘Quando as árvores morrem’ não é apenas um livro sobre luto, mas um desejo de memória potente”, afirma a poeta e doutoranda em Teoria Literária pela Unicamp, Pilar Bu. 

A cidade, que representa um vilarejo de fronteira no Sul do Brasil, e a casa da família tornam-se personagens da trama, assim como a árvore condenada. Para produzir o romance, a autora dedicou-se à pesquisa sobre o desenvolvimento e a inteligência das árvores, a fim de entender a dinâmica das florestas e como isso se mescla com o cotidiano de uma família. 

O livro também é uma experiência ficcional a partir de uma vivência de luto da escritora. Assim como a personagem, Tatiana perdeu o pai, falecido em 2018, que durante sua trajetória quebrou recordes nacionais como Papai Noel.  “Se a matéria da perda é dura, o livro nos faz entrar nesse clã de mulheres que perderam o pai, mas conservaram o afeto, pela partilha de uma linguagem sensível, poética, instigante”, conclui Pilar.  

Além de honrar a memória do seu pai, grande incentivador da sua escrita, o livro tem como missão poder abraçar quem fica. “Especialmente num luto coletivo como este que vivemos, acredito que este abraço, que eu busco com o livro, não se estende apenas aos que perderam alguém. Mas a todos nós”, aponta Tatiana. “Também é um livro sobre pessoas que não cabem, pessoas que transbordam. As duas experiências se confundem. Perder alguém também é não caber.”

Ficcionalização da memória ou autoficção?

O desejo de criar uma personagem inspirada em seu próprio pai existe desde antes de Tatiana perdê-lo. “Trata-se de uma obra de ficção, com muitas memórias: emprestadas, ressignificadas e, sobretudo, ficcionalizadas”, frisa a autora. “Não há nenhum compromisso de registro biográfico ou histórico. O pai da história é um personagem ficcional – embora seja inspirado e criado à memória de meu próprio pai – por isso, é um homem com suas próprias nuances, memórias e escolhas.” 

Para Tatiana, é preciso não somente ler mais mulheres, mas também aprender a ler mulheres, sem reduzi-las à autobiografia. “É preciso entender que as mulheres são capazes sim de criar personagens e enredos ficcionais, que não estamos falando sempre sobre nós mesmas. Essa licença poética, concedida de forma mais fluida e orgânica aos homens escritores, precisa fazer parte do repertório de leitores de mulheres”, crava.

Entre Elena Ferrante, Rosa Montero e Conceição Evaristo

Gabriel García Márquez e seu realismo fantástico, escritoras contemporâneas como Conceição Evaristo, Rosa Montero e Elena Ferrante estão entre as principais influências literárias de Tatiana Lazzarotto, que é natural de São Lourenço do Oeste (SC) e radicada em São Paulo desde 2011. Quando as árvores morrem bebeu de muitos outros nomes da literatura contemporânea, entre eles, Ana Martins Marques e José Luís Peixoto.

“A vontade de contar histórias veio da infância, dentro de casa: meu pai, que na época era viajante, e minha mãe, uma pernambucana radicada em Santa Catarina, me rechearam de causos, o que me deu consciência desde cedo de que havia outros mundos. Essas são minhas memórias mais antigas e ainda hoje elas atravessam qualquer coisa que eu escreva”, conta.

Formada em Jornalismo e em Letras-Português pela Universidade Estadual do Centro-Oeste (Unicentro-PR), Tatiana atualmente é mestranda em Estudos Culturais pela Universidade de São Paulo (USP), onde estuda coletivos de mulheres escritoras. É uma das organizadoras do livro Cartas de uma pandemia: testemunhos de um ano de quarentena (Editora Claraboia, 2021) e integra o Clube da Escrita para Mulheres, fundado pela escritora, poeta e cordelista cearense Jarid Arraes. Publicou em revistas literárias como: gueto, cassandra, Ruído Manifesto e Desvario.

Para Tatiana, é preciso não somente ler mais mulheres, mas também aprender a ler mulheres, sem reduzi-las à autobiografia. “É preciso entender que as mulheres são capazes sim de criar personagens e enredos ficcionais, que não estamos falando sempre sobre nós mesmas. Essa licença poética, concedida de forma mais fluida e orgânica aos homens escritores, precisa fazer parte do repertório de leitores de mulheres”, crava.

“Arrancam meu pai da memória, matam-no novamente pela linguagem e depositam-no em um lugar onde nós, sua família, não podemos acessá-lo. Não conseguimos lutar, uma vez que também nos esquecemos de quem somos. Parte de nossas raízes foi puxada com força, o que nos obriga a sobreviver abambalhados com o restante. Perder um pai é morrer planta, sem um pedaço debaixo da terra. Não falta luz do sol, água, adubo. Falta pai.” (p. 17)

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