Olhos em vírgula — um percurso poético pelo cotidiano da saúde pública

O cotidiano no ‘postinho’ durante a pandemia da covid-19 foi transformado em versos no livro de estreia da psicóloga e poeta gaúcha Janaína Steiger, em obra financiada por meio de moeda digital e publicada pelo NADA∴Studio Criativo

“onde enfermeira é um pouco vigilante
nutricionista é um pouco assistente social
vigilante é um pouco psicólogo
agente de saúde é um pouco enfermeira
assistente social é um pouco nutricionista
psicóloga é um pouco agente de saúde

não necessariamente nessa ordem
mas estruturalmente
nesse gênero”


Trecho de um poema do livro “Olhos em vírgula”

Originalmente um Trabalho de Conclusão de Residência na especialidade de Saúde da Família e Comunidade, o livro aborda de maneira poética o cotidiano da saúde pública numa interlocução entre literatura e vida real. A obra foi construída a partir de teorias e práticas vivenciadas pela autora durante o período de pandemia da covid-19 e é apresentada na forma de poemas, estabelecendo um importante diálogo entre psicologia, saúde pública e poesia. Com orelha assinada pela escritora, artista e arte educadora Agda Céu, e prefácio do professor, pesquisador, pedagogo e doutor em Educação Elisandro Rodrigues, “Olhos em vírgula” tem como seus temas principais a rotina profissional dos trabalhadores da saúde, a pandemia e suas consequências e os desafios da saúde pública, sempre levando em conta a
interseccionalidade. 

Esta publicação é um primeiro experimento do NADA — híbrido de ateliê de criação multimídia, produtora cultural & editora independente — utilizando a blockchain NEAR Protocol visando obter mais transparência tanto da distribuição quanto nos processos de produção dos livros, assim como na utilização de criptomoedas para compra de livros e no financiamento de novos projetos editoriais. Na comunidade NEAR, composta por criadores, desenvolvedores e entusiastas da web3 — a próxima geração da internet, onde os usuários
têm mais controle e privacidade sobre seus dados — existem as Organizações Autônomas Descentralizadas (DAOs), que avaliam propostas de financiamento, como os custos editoriais e de impressão de um livro

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“Este livro é para ser lido como documento poético para repensar o mundo. Janaína nos fala sobre a vida, e fala sobre o que nos acontece, e fala e faz poesia pensando a linguagem com[o] função poética”

Trecho do prefácio, assinado pelo professor Elisandro Rodrigues 

A viabilização de “Olhos em vírgula” contou com apoio da Writers’ Guild (coletivo de escritores de todo o mundo reunidos na rede NEAR) para realização da sua primeira etapa, que resultou na versão NFT do livro, e do NADA DAO para a segunda, que contemplou a
impressão da obra. A tiragem inicial será de 200 exemplares, sendo 100 exemplares distribuídos gratuitamente para serviços de saúde e bibliotecas comunitárias da cidade de Porto Alegre (RS), e outros 100 exemplares serão comercializados pela editora. Quem optar por comprar a versão NFT terá direito a solicitar o impresso e vice-versa.

Um olhar sensível para a saúde

Janaína Steiger nasceu em Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul. É escritora, poeta, psicóloga, trabalhadora do SUAS (Sistema Único de Assistência Social) e especialista em Saúde da Família e Comunidade. Também é coautora do livro “Cidade Cinza” (Editora Metamorfose, 2019), possui poemas, crônicas e contos em diversas coletâneas e integra a
equipe de poetas do portal Fazia Poesia.

De 2020 a 2022, atuou na Unidade de Saúde da Atenção Primária (ou, como é afetivamente denominado, “postinho”), sendo esse livro resultado dessa experiência que ela precisou formular em versos: “Nos diziam ‘linha de frente’ e eu enxergava uma linha vazia de uma
caderno em branco. Precisei escrever. Pra fazer da palavra e do meu corpo, linha. Com o intuito de tentar transmitir algo — tecer remendos — daquela experiência de ser vetor de transmissão e heroína, salvação e risco.”

Durante a escrita de “Olhos em vírgula”, três livros foram essenciais para o processo de criação da autora: “O humano do mundo” da Débora Noal, “Pacientes que curam: O cotidiano de uma médica do SUS”, da Júlia Rocha, e “Livro sobre nada”, do Manoel de Barros. Também são suas influências literárias nomes como Conceição Evaristo, Aline Bei, Manoel de Barros, Ana Martins Marques, Viviane Mosé, Agda Céu e Luna Vitrolira.

Com um projeto gráfico unindo versos com fotografias do cotidiano da poeta e psicóloga, a obra convida o leitor comum a adentrar em um universo de cuidado, acolhimento e trabalho como parte, não mais só como possível paciente. Assim, Janaína constrói um livro capaz de
tocar qualquer leitor que se permita circular pelo “postinho” a partir dos poemas que evocam a atenção plena, a escuta ativa, o factível, o sensível e a observação de presenças e ausências nesse espaço essencial. Como escreve Agda Céu: “Janaína escuta o mundo para
ouvir a si e ao outro poeticamente, buscando o desejo de vida, para a criação de novos lugares possíveis e habitáveis”.

Elisandro Rodrigues, no prefácio, também ressalta o quanto “Olhos em vírgula” se constrói e se faz poderoso por trazer a sensibilidade como força, como parte do universo humanitário e humano. “Os poemas aqui apresentados são atos de pensamento que narram poética e
politicamente o cotidiano de formação e de trabalho, mostrando uma dimensão sensível no campo da saúde”, define. “O que lemos é um manifesto, uma pausa na luta —como lembra Manoel Ricardo de Lima — ou poemas para ler antes das notícias — como aponta Alberto Pucheu — ou, ainda, simplesmente poemas para se ler em uma unidade de saúde.“

“A minha escrita é uma escrita do cotidiano, que alterna imagens e lacunas, o factível e o sensível, o macropolítico e o singular. Ora sussurra, ora grita”, define a autora, que tem um projeto embrionário de romance e deseja desenvolver um mestrado com base no seu trabalho atual, dentro do SUAS, que compõe juntamente ao SUS a rede pública intersetorial.