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O Misterioso Desaparecimento de Bartolomeu Corsário, conto de Victor Nouz

Victor Nouz. Brasileiro, paulistano da Mooca, São Paulo, Capital. Há mais de 30 anos mora em Fortaleza, Ceará. Roteirista há mais de 10 anos, escreve Argumentos e Roteiros para minisséries, curtas e documentários. Publicitário, somando mais de 35 anos de bagagem criativa. Primeiro como Redator e depois como Diretor de Criação em grandes agências. Autodidata em Literatura, escreveu contos durante anos apenas como entretenimento para os amigos.

O Misterioso Desaparecimento De Bartolomeu Corsário

 Bartolomeu Natanael Corsário estava definitivamente morto, disso Palmira tinha toda certeza. Mesmo assim, antes de deixar o apartamento dele, deu uma boa olhada se as coisas estavam nos seus devidos lugares como planejado. A porta arrombada, o sangue espalhado no tapete, a sala toda revirada apontando vestígios de luta, o rastro denunciando ter sido o corpo arrastado até a porta da cozinha dando para a escada de serviço. Tudo certo. Ela cuidou até de não usar perfume, nem mesmo desodorante. Nada. Excluiu tudo que pudesse incriminá-la. 

Estamos no domingo. E o serviço foi pensado para hoje à noite porque a probabilidade de encontrar algum funcionário do prédio zanzando pelo corredor é remota. Outro facilitador é que o apartamento de Bartolomeu Natanael Corsário se encontra no primeiro andar e chegar à garagem no subsolo leva coisa de menos de dois minutos de escada. Na descida, Palmira buscou de assegurar se havia deixado respingos de sangue nos degraus; isto era importante, pensar nas evidências… Meses atrás quando tomou a decisão de ir em frente com aquilo, Palmira anotou, observou, estudou cada detalhe do dia a dia do homem que deveria matar. A partir daí, o tempo de vida de Bartolomeu N. C. estava contado.  

                 Já na garagem, ela refez mentalmente os passos a seguir. Reconhecia que estava gostando, a adrenalina a mil, pesou a mão um pouco nas minúcias, reconhecia, mas como Palmira era marinheira de primeira viagem na vida do crime, há que se dar o devido desconto. Entrou no carro, consultou o relógio, faltavam três minutos para as vinte e duas horas, a troca na portaria deveria estar acontecendo naquele momento. Ligou o carro e arrancou suave, dando tempo para o porteiro do turno da noite receber a solteirona gostosa do 408 no interior da guarita, como sempre fazia nos finais de semana. O sincronismo foi perfeito. O rapaz abriu o portão da garagem automaticamente, sem nem se dar conta de quem era o carro que saia, deliciado que estava com a boca da experiente mulher agachada embaixo da mesa. 

                Palmira rodou sem pressa por quase uma hora até entrar na via que margeia o canal, dirigiu por mais uns dez quarteirões e fez o contorno à esquerda depois do cruzamento, entrou numa rua estreita, convenientemente sem casas e edifícios e nem câmeras por perto, só uma pequena galeria de lojinhas fechadas, tudo estava saindo conforme planejara. Seguiu acompanhando o muro alto que protege a parte de trás do Centro Comunitário deserto nessa hora, diminuiu a velocidade e desligou os faróis. Estacionou bem atrás do sedan quatro portas parado longe da iluminação do poste. Respirou fundo, faltava pouco agora. Saiu cautelosa e olhou ao redor demoradamente: nem viva alma. Abriu lentamente o porta-malas do carro em que veio, sem fazer ruído, e respingou no interior o restante do sangue da vítima. Nisso, um cachorro idiota resolveu latir ao longe. Palmira gelou. Fechou o porta-malas com todo o cuidado e ficou estática por instantes, atenta, a respiração retida, os sentidos interpretando cada ruído da noite, tremendo e rezando. Felizmente, nada. Ela respirou fundo. Ainda não aliviada de todo tirou as luvas de plástico manchadas de sangue e colocou num saco de supermercado, entrou no sedan quatro portas ainda trêmula e arrancou rapidamente deixando lá o carro do Natanael. Estava com medo e ao mesmo tempo feliz. E também orgulhosa por ter finalmente conseguido livrar-se de Bartolomeu Natanael Corsário. Ele estava morto definitivamente, deu graças. Palmira sorriu aliviada, agora sim. Ligou o rádio e sentiu uma enorme vontade de fumar, apesar de ter deixado o vício meses atrás. Ela bem o merecia, aceitou perdoando-se. Alguns quilômetros dali jogou o saco de supermercado com as luvas comprometedoras numa caçamba abarrotada de lixo. Voltou ao hotel.

             A primeira coisa que Palmira fez cedo pela manhã foi ligar a tv no noticiário local. Bingo! Pulou da cama eufórica. Duas notícias de futebol e logo depois entrou a reportagem falando do desaparecimento do jovem diretor financeiro Bartolomeu Natanael Corsário; referiram-se ao sangue no tapete, ao carro abandonado e a outras evidências como ela previra. Os amigos estavam consternados, pois tudo indicava que houvera um sequestro, quem sabe até houvessem matado o homem. A ex-mulher, entrevistada, externava uma preocupação cuja sinceridade Palmira sabia estar ligada ao polpudo seguro que a vítima possuía. Bartolomeu não tinha filhos.

— Nunca encontrarão o corpo, sua vadia! Acabou a boa vida, pilantra — desabafou por dentro. 

Palmira desligou a tv, tinha viagem marcada, deixaria o país ainda à noite. O plano era ficar afastada até a coisa toda esfriar. 

 

               O descanso na Europa lhe fizera bem. Seis meses foram passados e hoje de manhãzinha a vemos de volta à cidade. Palmira estava belíssima, revigorada, uma mulher refeita de corpo e alma, fascinante da cabeça aos pés. Apressada, só teve tempo de deixar as malas no meio da sala do luxuoso apartamento comprado com parte do dinheiro que Bartolomeu havia desviado da empresa e agora lhe pertencia. O restante, que ainda era muito dinheiro, estava garantido numa conta secreta em Luxemburgo. Só Palmira teria acesso. Banhada e perfumada, vestiu seu melhor conjunto, caprichou na maquiagem, combinou brincos, colar, sapatos. Era o seu primeiro dia no novo emprego. 

 O trânsito colaborou e ela chegou com bastante folga no horário.

             Palmira nem bem saiu do elevador e logo o seu perfume tomou discretamente conta do ambiente. A recepcionista a atendeu abrindo um sorriso bem treinado e indicou a pessoa que a receberia. Exalando confiança, ela tomou o corredor formado entre as estações de trabalho e caminhou de maneira estudada e sensual, desfilando cheia de charme seu porte elegante, sua morenice, os cabelos castanhos ondulados cobrindo os ombros, pernas torneadas, colecionando olhares masculinos e queixos caídos, atraindo de imediato a inveja dissimulada das outras mulheres do andar — sua futura secretária a aguardava empertigada na porta de um luxuoso escritório. A simpática senhora estudou Palmira de cima abaixo por um breve instante, embora sem intenção de fazê-lo. Palmira apenas sorriu, condescendente. Em seguida, a secretária deu-lhe boas-vindas colocando-se à disposição e retirou-se deixando atrás de si um olhar enigmático antes de fechar a porta. 

                Repentinamente o tempo mudou de humor. Resolveu nublar do nada, acinzentando uma manhã que enganosamente prometia um sol convidativo. 

                Uma ameaça de chuva grossa escorregou uns poucos pingos encharcados pela parede envidraçada que emoldurava a linda vista que dava para o parque. Já acomodada e detalhando com o olhar cada canto do escritório, Palmira, sentindo-se em casa, respirou fundo como se o cheiro da grama molhada do parque, trinta andares abaixo, pudesse chegar até ela. Girou a confortável poltrona de couro e acomodou-se melhor. Então, instintivamente, levantou os braços cruzando as mãos atrás da cabeça buscando estirar os músculos e, ato contínuo, ia colocando os pés sobre a mesa de trabalho. Pegou-se no meio do movimento e sorriu, recriminando-se no íntimo com sarcasmo. Essa postura calcinha-de-fora não era de bom-tom profissional. Se alguém a visse, poderia arranhar sua imagem de recém-chegada diretora financeira da empresa. No entanto, passada meia hora quando muito, absorta, e às voltas com a análise de um relatório complicado, ela percebeu-se alisando o rosto demoradamente, hábito antigo, o que a fez estranhamente sentir a presença do falecido Bartolomeu Natanael. 

               Traída por um gesto que ele faria naturalmente se ainda estivesse vivo, ela não pôde deixar de pensar por um instante, um lapso de tempo, se ter matado Bartolomeu N. C. não teria sido em vão. 

               Por força do hábito, sem querer, Palmira havia alisado seu rosto que agora era nu e liso, graças a um tratamento à um laser perfeito. E foi também sem querer, que ela teve a sensação de que seu pênis, os testículos e o pomo de Adão, esses resquícios de macho, esses penduricalhos que já não tinham mais serventia nenhuma no seu corpo de mulher, ela… Ela teve a sensação repugnante de que ainda estavam vivos e grudados nela, apesar de os ter deixado bem mortos na mesa do cirurgião plástico junto com sua vida anterior de Bartolomeu.     

                Palmira levantou-se de maneira brusca, e, instintivamente, foi até o armário de madeira de lei na parede junto à mesa de reuniões. Como de costume abriu a porta esquerda embaixo (conhecia o móvel como a palma da mão), quando deu por si já estava com o cachimbo na boca e abrindo a embalagem do fumo importado que Bartolomeu mantinha escondido. Palmira sentiu-se ridícula. Foi preciso sair o primeiro xingamento e explodir num desabafo jogando tudo longe para ela tomar pé de ter sido traída, inconscientemente, outra vez. Primeiro foram os quase pés sobre a mesa, depois o alisar seu rosto saudoso da barba e, por fim, o cachimbo e o fumo. 

              Embora acuada pelos velhos hábitos do falecido Bartolomeu Natanael Corsário, Palmira sabe que fará de tudo para mantê-lo bem morto dentro dela. Se precisar até aceita de bom grado carregar para sempre esse cadáver insepulto a tiracolo dentro da bolsa Louis Vuitton ou escondido nos Prada que adora calçar. Mesmo estando ciente de que isto não afastará a incômoda sensação de coisa reticente e flutuante, emergindo de vez em quando na lembrança, fazendo-a recordar-se do crime que cometeu forjando a morte do homem que nunca deixou de ser. 

O espelho agora pode até refletir uma imagem diferente. Mas, no íntimo, Palmira ainda se vê refém do Natanael. Ainda se sabe dependente da mesma mentira.

             Porque apesar de tudo ter sido feito com a boa intenção de libertar daquele sujeito uma mulher aprisionada, ainda assim foi um crime. E foi por pouco, um nada, não fossem os velhos hábitos ressurgindo aqui e ali, as manhas antigas, uns detalhezinhos bobos, esses malditos intrusos indesejáveis. Não fosse por isso, haveria de ter sido, sem sombra dúvida, uma obra–prima, um crime completo. Quase perfeito.

 

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