Confira abaixo o prefácio na íntegra, assinado por Paula Beatriz Albuquerque
diariologismos: um estudo do devir
Diário seria uma construção de memórias, um deslugar, um quase instante que se perdeu em alguma passagem do tempo ou em alguma desconstrução do espaço. As memórias
existem, talvez não dentro de nós, mas na nossa ausência, nos vestígios do hoje ou da infância, às vezes tão longínqua que não encontram caminhos nas nossas lembranças: fazem parte do Todo, poeiras cósmicas que guardam e compõem a vida inteira. A idade do universo também é o plasma da nossa memória.
O autor começa com uma apresentação. Acredite, trata-se de um monólogo e a peça já começou. Confessa a sua dor, as curvas do caminho – e engraçado é que uma curva é uma bifurcação, o que endossa esta modesta hipótese de que não se trata de um diário, mas de uma peça de teatro que ficcionaliza um diário. O autor ele-mesmo foi transformado em personagem do próprio livro que escreveu. No trecho que selecionei e coloquei aqui, nota-se uma ambiguidade do autor que se sabe personagem e que na condição de personagem não quer saber de sua instância enquanto autor. Assim, vemos o seguinte trecho:
“Caso me perguntem se um dia vou querer ler, acho que não; exceto, se alguém houver tal gentileza a balbuciar – de preferência, sem que me diga o nome do autor”.
Quando vivemos imersos na materialidade dos acontecimentos a memória não existe. O que temos são os nossos sentidos e a nossa sensibilidade bruta atravessando as
situações, o cotidiano, o tédio, as dificuldades, as dúvidas. Cada movimento, cada singelo
acontecimento é um quadro imaterial moldado nas nossas impressões. Sendo assim, escrevê-las é uma reescritura desse quadro, agora sem moldura algo que delimitaria a divisãodo real e do fictício.
No entanto, observe que não existe em Diariologismo uma entrada de registro temporal e espacial “Rio de Janeiro, 5 de dezembro de dois mil e tal”. Aqui temos quadros de atos teatrais. Repito: beira entre a consciência de ser autor e a consciência que existe em si mesmo enquanto personagens; repartem-se entre ele o que ele foi e o vir-a-ser,
ausência e ficção. Ele é o cinzeiro vazio, a embriaguez, o boteco, Bach, o peixe, a prostituta, a morte, o vigarista, o vento, Zuenir, Woody Allen, o pai, a mãe, o fusca cinza 75, o retrovisor do fusca cinza 75. Boechat ficccionalizado é parte dessa nuvem cósmica de personagens que é o autor e que se desprende dele, em pleno devir dilacerante – e o Chopin é o som dos estilhaços, quando nos dilaceramos de nós mesmos.
O que me impressionou em diariologismos, no nível da forma, foi a falta de estrutura de uma escrita de diário e a falta de uma configuração de uma peça teatral. Esse é o movimento do livro, quase uma performance movida por ausências que busca sentidos, tanto quanto eu, ela mesma ou você. Poemas são relatos capazes de inventar um novo mundo à parte da existência. Temos indicadores, mas são vestígios, apenas. No conteúdo, trazem as angústias de nossos passos viventes para além dos muros cotidianos; trazem as buscas de nós mesmos dentro de nossas vidas. A dilaceração do livro também é fictícia, temos aqui um todo coeso, da mesma forma como tentamos nos costurar.