ENTREVISTA | Uma jornada literária através dos traumas familiares e políticos da era Collor com Vera Saad

O novo livro de Vera Saad, (@verah_saad)A face mais doce do azar” (Editora Claraboia), mergulha nos tumultuados anos 1990 do Brasil, trazendo à tona os traumas familiares desencadeados pela política econômica de Fernando Collor. A narrativa acompanha Dubianca, uma pré-adolescente inteligente e sensível, cuja vida é drasticamente afetada pela desestruturação econômica, levando sua família a perder estabilidade financeira e moradia. Enquanto enfrenta as consequências desse cenário caótico, Dubi também lida com descobertas sobre atração sexual, os desafios de ser mulher numa sociedade machista e o mistério em torno de um desaparecimento. O livro não apenas resgata os eventos políticos da época, mas também mergulha em questões profundas como abuso e os impactos emocionais da crise econômica.

Vera Saad, escritora paulista, tem uma trajetória premiada que se estende desde os anos 1990, quando venceu o concurso de contos Sesc On-line em 1997. Formada em jornalismo pelo FIAM-FAAM Centro Universitário, mestre em Literatura e Crítica Literária e doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, Saad é autora de obras aclamadas como “Telefone sem fio” (Patuá, 2014) e “Dança sueca” (Patuá, 2019), além de manter uma coluna na Revista Vício Velho. 

 

Inspirada pelo contexto político atual e influenciada pela literatura, Saad escreveu “A face mais doce do azar” para explorar paralelos entre a ascensão da extrema direita e o caos vivido durante era Collor, oferecendo aos leitores uma narrativa envolvente que não apenas relembra um período marcante da história brasileira, mas também revela as complexidades humanas diante de crises e traumas.

 

Confira a entrevista completa com a autora.

 

 

Como começou a escrever?

 

Tive a certeza de que queria ser escritora aos 14 anos, quando escrevia só pra mim. Mas a vontade é mais antiga, me lembro de um sonho que tive bem nova com um livro de Monteiro Lobato que não existia, acordei desesperada com esse livro, acredito que escrevo na tentativa frustrada de tornar real esse livro que não existe. Minha mãe também escrevia quando éramos pequenas. Fui muito influenciada por ela e por minha avó, que escrevia lindos poemas.

 

Como você definiria seu estilo de escrita?

Eu acredito que uma pessoa é atravessada por tantas outras pessoas e sempre levo isso para os meus livros. Será muito difícil encontrar poucos personagens em meus romances, porque cada história é feita de muitas histórias. Não por acaso meu tema favorito é a família brasileira, grande, aquela que enche a cozinha nos domingos.

Por que escolher o romance como um gênero?

Romance é meu gênero preferido. Quando comecei a escrever, ainda adolescente, arriscava uma poesia bem ruim, mas eu gosto de inventar histórias, conviver por bastante tempo com os personagens, conhecê-los aos poucos, deixar que me conquistem.

Você tem algum ritual para escrever? 

Quando estou escrevendo parece que tudo vira livro. As pessoas no metrô, no trem, no trabalho, os amigos, tudo pode entrar no meu romance, porque meu olhar muda. Aliás, não preciso estar necessariamente em frente ao computador para escrever.

Quais são as suas principais influências artísticas e literárias? Quais influenciaram diretamente A face mais doce do azar?

 

Costumo dizer que minha vida se divide entre antes e depois de Em busca do tempo perdido, depois que li os sete volumes de Proust, eu pude dizer a mim mesma que era escritora. Alice Munro, Elvira Vigna, Philip Roth, Javier Marías talvez sejam os escritores que mais me influenciam atualmente. Não sou muito influenciada por cinema, mas os filmes de Domingos Oliveira são uma aula de diálogo para mim. Também sou muito influenciada pela música, Milton Nascimento e Joni Mitchell são minhas maiores inspirações para a escrita.

 

O que motivou a escrita do livro? 

 

O momento e a indignação com o momento em que vivíamos. Como era possível alguém que tinha a arma como símbolo de campanha ser favorito nas campanhas? O tempo é algo bastante curioso. Comecei em 2018, mas procrastinar bastante a escrita com a pandemia, separação e alguns lutos nesse meio-tempo. Quando comecei a mentoria literária com a Jarid Arraes, em outubro de 2022, não tinha nem 40 páginas, das quais 20 foram deletadas. Por ter sido contemplada pelo Proac, me vi com prazo para escrever e acabei escrevendo o resto do livro em alguns meses, terminei o livro no dia da posse do Lula,  que sempre acharei significativo.   

 

Em sua análise, quais as principais mensagens que podem ser transmitidas pelo livro?

 

O romance mostra como a política afeta diretamente nossa vida. Não podemos simplesmente dizer que não gostamos de política. Tudo é política. Também retrato uma época anterior a muitas conquistas femininas, digo conquistas porque vivenciei o mundo antes e depois de “não é não”, e sei do impacto que isso teve para as mulheres. Não conheço uma mulher com mais de 40 anos que não tenha sofrido abuso sexual, e o que é pior, sem ter consciência de que aquilo era um abuso.

 

Por que escolheu esse tema?

 

A escolha do tema principal, o Plano Collor, aconteceu na época da eleição de Bolsonaro em 2018. Estava lendo Complô contra a América, de Philip Roth, e pensei em como o que vivíamos era semelhante com o que eu lia, sobretudo a ascensão da extrema direita. Pensei que vivemos uma realidade parecida com a eleição de Collor, até me lembrar do caos instaurado com o Plano Collor, parecia uma distopia, mas era real. Família, mais especificamente, a família brasileira, é meu tema favorito. Como se trata de uma família que vai à falência com o Plano Collor, pensei que a menina é sempre o lado mais frágil da corda, em uma época extremamente machista, quando era normalizado o envolvimento de homens de meia-idade com pré-adolescentes (quem não se lembra do filme A menina do lado). No livro quis dar voz a essa menina, agora seria a vez dela de contar a própria história.

 

O que esse livro representa para você? 

 

Ele representa um grito de muitos brasileiros que perderam tudo com o Plano Collor e não ganharam a atenção de ninguém, ao menos eu desconheço outra obra literária que retrate pessoas que perderam tudo com esse plano, muita gente se suicidou por causa disso. 

 

O que vem por aí?

 

Tenho uma ideia para o próximo livro, mas ainda quero trabalhar A face mais doce do azar, dar ao livro a atenção que merece.

Na sua história recente, desde a redemocratização, o Brasil passou por muitas transformações e crises, principalmente econômicas. Talvez uma das mais marcantes tenha sido aquela do início do governo Collor, quando o autointitulado caçador de marajás confiscou as contas de todos os brasileiros. As famílias foram impactadas em diversos níveis, muitas vezes com consequências irreversíveis. A face mais doce do azar conta a história de uma família dessas, da época do recomeço do país depois da ditadura, de brasileiros comuns que sofreram com a sequência da irresponsabilidade de seus políticos – um fantasma que continua nos assombrando em ciclos da nossa história. Dubianca era uma pré-adolescente quando os fatos amargos que narra começaram a definir como seria sua chegada à adolescência. Observadora, a menina foi tentando compreender como as transformações do país estavam agindo sobre as relações entre as pessoas à sua volta. Vera Saad confere à sua narradora uma voz falsamente leve, em que as frases curtas denunciam as fissuras nessa mulher que volta a um pedaço do seu passado com sabor amargo.

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