A prosa precisa de Zeh Gustavo, escritor e sambista

Vencedor do Prêmio Lima Barreto (2018), contista, músico e poeta, o premiado escritor Zeh Gustavo apresenta seu novo livro, lançado em 2018, Eu algum na multidão de motocicletas verdes agonizantes.

POR SOBRE O RUÍDO RUDE DA ROTINA BESTA

Éramos somente eu e minha mãe, num conjugado em Copacabana. A coisa precarizava mas não mudávamos de Copacabana. Não existia mundo além de Copacabana. Daí que minha família enterrara-se toda em Copacabana, constituindo um cemitério de vazios engarrafados ao sabor de sapólio de mascar e detergente de bolhas, algo barulhando qual sabão de pedra tacado ao esmo. Na verdade, a família éramos eu, minha mãe e uma amiga da minha mãe. Num conjugado em Copacabana. A amiga de minha mãe era buça-profissaPultinha. De regaço e recato: mulher de um gringo só, um gringo casado. Um gringo casado e sacana. Um gringo veado. Veado e provavelmente broxa, punhetesco e trivial, como qualquer gringo que tirasse Copacabana a sério naquela época.  

Eu era um cara espinhento, 15 pra 16, tímido-assustadiço, come-ninguém, uniforme de colégio em gastura lambuzado, eu, um carcaço magrelumento de branquice azeda e triste e épica. Eu vivia colado com a minha mãe, que pode ser pulada. Éramos, assim, eu, mamãe e a sua amiga pultinha – irrequintada, desorientadona, serelepe e baixota, carnudinha e encaracolada, espevita, português no ralo porém com traquejo na jeitola de pidona-uau. Faltou alguém? Éramos, afinal, eu, espinheiro pronto a espocar; minha mãe, que vou pular de novo; a amiga da minha mãe, nem ninfa nem bagaço; ah, claro, e o filho desta última, nosso bravo Zé Merdinha – meninote traíça em seus nove anos, aprendedor de zarolhagens, xerido nos papos de xereca de sua mãe, que o tinha gerido em sua precocidade de dadeira mirim, pai desanotado.  

Sobrevivíamos. Um dia minha mãe enviou Zé Merdinha ao supermercado Cabaré de Pobre. O supermercado Cabaré de Pobre não existia. Mas Zé Merdinha foi lá no Cabaré de Pobre com o dinheiro suado de mamãe. Tarefa, comprar queijo para pizza de massa caseira, semicoberta, que mamãe fabricava para distraimento das givas da miserada convivente. Porém, Zé Merdinha retornado trazia, duas sacolas: presunto picado, goiabada ardida, frango em pó, sorvete de plástico, espinafre para cara sardenta e outras guloseimas de menino-mala. Mãe minha batucou: 

– Enlouqueceu, moleque? 

– Tava baratinho, tia. 

Recheio esbordeante, num dia; arroz, feijão e aipim frito nos seguintes. Tava na moda aipim frito! Já minha mãe vendia trecos. Os trecos não estavam na moda porque ninguém tinha dinheiro para comprá-los. Brasil, anos 80, século passado. 

Tédio, sopada de vida tola. Eu estranhava. Tantas pessoas, e aquelas, ao meu lado. Quem eram eles? Nos dias de mais-venda, aluguel desenrolado, minha mãe me dava uns trocos pro do sorvete. Eu gostava de sorvete. Vez-outra, no entanto, engambelava no sorvete. Fazia juntagem daquele me-rir até completar pro do cinema. E aí eu ia, sozinhudo, desamigado e contente, ver filmes que depois me remetiam a imagens de outros filmes que eu sonharia viver-fazer e nunca sequer realizaria senão nos sonhos.  

Ruído frequentava, na casapê de Copa. Eu dava uns pegas na mãe do mala-menino durante os intervalos da falação desgrenhada. À essa parolagem somava-se a televisão, parceirosa. Rádio, só comigo, no baixinho das vozes soletradas. Ouvia programa esportivo, imitava os narradores e os repórteres, trepidantes cata-informes em cima do jogado. Rádio tinha alma. Tevê, sombra e ruído, pegava muito mal. Acho que a mãe de Zé Merdinha queria algo sério comigo… Como nunca daríamos certo, ela não me dava nada além de beijinhos incidentais por sobre o ruído rude da rotina besta.  

Uma vez eu vi um pacote de queijo me assobiando, no Cabaré de Pobre. Tive de escondê-lo nas calças. Ninguém viu. Mas eu vi. E eu era um increscido: convoquei mais alarme no devolver a mercadola do que antes, ao engrupi-la. Vergonhão! Zé Merdinha também viu. Porém butucou, guardião de minha infância honesta. Fiquei lhe devendo, pelo segredado. E ele nunca mais tocou no assunto. Definitivamente, eu não comeria sua mãe. 

Copacabana é um bairro onde os sumidos não somem. Os sumidos se multiplicam. E veio mais um despejo. Eu e mamãe fomos parar num lugar que eu achei bacana, mas que minha mãe e o resto da família, que já estava enterrada em Copacabana e não sabia, chamavam de O Cu do Brasil. O Cu do Brasil era perto de tudo. A alimentação melhorou: duas pensões baratas, nos arredores. Com a mudada, o menino Zé Merdinha escafedeu-se, junto com a sua mãe buça-profissa. Acho que saíram brigados com a gente, quer dizer, com minha mãe. Isso era muito comum.  

Tempo ê rerê rerê, conforme cantam Zé Luiz do Império e seu Nelson Rufino. Eu fui ganhando tamanco nos pés. Já minha mãe… Minha mãe eu vou pular. Não, não vou. Saltou de um ônibus em pleno trânsito, desistiu, perdeu.  

Também pudera… Destino caro, esse nosso. 

Zeh Gustavo é músico, escritor revisor. Mexe com poesia, canto, letra, conto. Dividido entre duas cidades, Cuiabá e Rio de Janeiro, faz parte, na música, de grupos/projetos como Terreiro de Breque (RJ), Samba do Aconchego (MT) e Triuaipi (MT) – já passou também por Cordão do Prata Preta (RJ), Samba da Saúde (RJ), Banda da Conceição (RJ). Na literatura, publicou Eu algum na multidão de motocicletas verdes agonizantes (Viés, 2018; vencedor do Prêmio Lima Barreto de Contos da Academia Carioca de Letras), Pedagogia do suprimido (Verve, 2013; Autografia, 2015), A perspectiva do quase (Arte Paubrasil, 2008) e Idade do Zero (Escrituras, 2005). Participou, entre outras, das coletâneas Porremas (Mórula, 2018), Para ler o samba (Ímã, 2016), O meu lugar (Mórula, 2015), Rio de Janeiro: alguns de seus gênios e muitos delírios (Autografia, 2015), Porto do Rio do início ao fim (Rovelle, 2012). É um dos organizadores do FIM (Fim de Semana do Livro no Porto).

Vencedor do Prêmio Lima Barreto de Contos 2014 e com diversos de seus textos premiados em outros concursos e publicados em antologias, Eu algum na multidão de motocicletas verdes agonizantes (Viés, 2018) é uma coletânea livre de contos em que o eu narrativo se revela, em geral, o personagem principal. Este narrador-ator conduz a leitura, com sua fala corrosivamente poética e mordaz, por périplos e situações fictícias que beiram uma super-realidade ou, em algumas tramas, mesmo a banalidade do real. O que acontece se conforma em pano de fundo, um meio-margem para a configuração/atuação de um(a) sujeito(a) não obediente, descaricato(a), protuberante nos seus contornos pouco definidos. Mas que ri – mais do que chora. A vida, trajada de farsa, nesses contos, está para jogo depois que não interessa mais salvá-la, tampouco muni-la dos objetivos tangíveis e concretos do dito mundo produtivo, ora rebaixado à coisa pouca que os personagens usam somente como roupas gastas de vestir seus destinos – e desatinos. 

 

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