Lygia Fagundes Telles, a dama da literatura brasileira

Uma das mais profícuas escritoras brasileiras, com obras produzidas desde a juventude, Lygia Fagundes Telles, dona de um estilo onde se observa o fluxo de consciência ora dos personagens ora do narrador, é celebrada como a dama da literatura.  

ENTÃO, ADEUS!  

Isto aconteceu na Bahia, numa tarde em que eu visitava a mais antiga e arruinada igreja que encontrei por lá, perdida na última rua do último bairro. Aproximou-se de mim um padre velhinho, mas tão velhinho, tão velhinho que mais parecia feito de cinza, de teia, de bruma, de sopro do que de carne e osso. Aproximou-se e tocou o meu ombro: 

— Vejo que aprecia essas imagens antigas — sussurrou-me com sua voz débil. E descerrando os lábios murchos num sorriso amável: – Tenho na sacristia algumas preciosidades. Quer vê-las? 

Solícito e trêmulo foi-me mostrando os pequenos tesouros da sua igreja: um mural de cores remotas e tênues como as de um pobre véu esgarçado na distância; uma Nossa Senhora de mãos carunchadas e grandes olhos cheios de lágrimas; dois anjos tocheiros que teriam sido esculpidos por Aleijadinho, pois dele tinham a inconfundível marca nos traços dos rostos severos e nobres, de narizes já carcomidos… Mostrou-me todas as raridades, tão velhas e tão gastas quanto ele próprio. Em seguida, desvanecido com o interesse que demonstrei por tudo, acompanhou-me cheio de gratidão até a porta. 

— Volte sempre — pediu-me. 

— Impossível — eu disse. — Não moro aqui, mas, em todo o caso, quem sabe um dia… — acrescentei se nenhuma esperança. 

— E então, até logo! — ele murmurou descerrando os lábios num sorriso que me pareceu melancólico como o destroço de um naufrágio. 

Olhei-o. Sob a luz azulada do crepúsculo, aquela face branca e transparente era de tamanha fragilidade, que cheguei a me comover. Até logo?… “Então, adeus!”, ele deveria ter dito. Eu ia embarcar para o Rio no dia seguinte e não tinha nenhuma idéia de voltar tão cedo à Bahia. E mesmo que voltasse, encontraria ainda de pé aquela igrejinha arruinada que achei por acaso em meio das minhas andanças? E mesmo que desse de novo com ela, encontraria vivo aquele ser tão velhinho que mais parecia um antigo morto esquecido de partir?!… 

Ouça, leitor: tenho poucas certezas nesta incerta vida, tão poucas que poderia enumerá-las nesta breve linha. Porém, uma certeza eu tive naquele instante, a mais absoluta das certezas: “Jamais o verei.” Apertei-lhe a mão, que tinha a mesma frialdade seca da morte. 

— Até logo! – eu disse cheia de enternecimento pelo seu ingênuo otimismo. 

Afastei-me e de longe ainda o vi, imóvel no topo da escadaria. A brisa agitava-lhe os cabelos ralos e murchos como uma chama prestes a extinguir-se. “Então, adeus!”, pensei comovida ao acenar-lhe pela última vez. “Adeus.” 

Nesta mesma noite houve o clássico jantar de despedida em casa de um casal amigo. E, em meio de um grupo, eu já me encaminhava para a mesa, quando de repente alguém tocou o meu ombro, um toque muito leve, mais parecia o roçar de uma folha seca. 

Voltei-me. Diante de mim, o padre velhinho sorria. 

— Boa noite! 

Fiquei muda. Ali estava aquele de quem horas antes eu me despedira para sempre. 

— Que coincidência… — balbuciei afinal. Foi a única banalidade que me ocorreu dizer. — Eu não esperava vê-lo… tão cedo. 

Ele sorria, sorria sempre. E desta vez achei que aquele sorriso era mais malicioso do que melancólico. Era como se ele tivesse adivinhado meu pensamento quando nos despedimos na igreja e agora então, de um certo modo desafiante, estivesse a divertir-se com a minha surpresa. “Eu não disse até logo?”, os olhinhos enevoados pareciam perguntar com ironia. 

Durante o jantar ruidoso e calorento, lembrei-me de Kipling. “Sim, grande e estranho é o mundo. Mas principalmente estranho…” 

Meu vizinho da esquerda quis saber entre duas garfadas: 

— Então a senhora vai mesmo nos deixar amanhã? 

Olhei para a bolsa que tinha no regaço e dentro da qual já estava minha passagem de volta com a data do dia seguinte. E sorri para o velhinho lá na ponta da mesa. 

— Ah, não sei…  Antes eu sabia, mas agora já não sei. 

Texto extraído do livro “FIGURAS DO BRASIL 80 AUTORES EM 80 ANOS DE FOLHA”, Editora PUBLIFOLHA. – FOLHA DE SÃO PAULO pág. 129 E 130. 

"Fico aflita só de pensar nas novas gerações lendo esses meus livros (os dois primeiros) que não têm importância. Eu não quero que os jovens percam tempo com eles. Quero que conheçam o melhor de mim mesma, o melhor que eu pude fazer, dentro das minhas possibilidades"

(Lygia Fagundes Telles sobre Ciranda de Pedra)

Clique na imagem e baixe Ciranda da Pedra em pdf

Saiba Mais

Aos 15 anos, financiada pelo pai, Lygia publicou seu primeiro livro, Porão e Sobrado (1938).  

Participou ativamente de debates literários, nos quais conheceu Mário e Oswald de Andrade, Paulo Emílio Salles Gomes e outros nomes da cena literária brasileira. Fez parte da Academia de Letras da Faculdade e escreveu para os jornais Arcádia e A Balança. 

Em 1941, matriculou-se na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, sendo uma das seis mulheres em uma classe com mais de cem homens; lá, conheceu a poeta Hilda Hilst, que veio a ser a sua melhor amiga. A escritora afirmou, em entrevista, que sofreu deboche por ser mulher e por estar na faculdade e querer seguir a profissão de escritora, considerada masculina, dizendo que os rapazes perguntavam para ela e suas outras colegas de classe com irônico espanto o que elas foram fazer lá, “casar?” Para ela, esse começo foi difícil era um desafio, pois estavam na moda as poetisas, mas escrever um livro com a liberdade de abordar todos os temas, era outra coisa. “Sim, foi um duro desafio porque o preconceito era antigo e profundo. Enfim, eu sabia que na opinião de Trotsky os que vão logo na primeira fila são os que levam no peito as primeiras rajadas. A solução era assumir a luta, sair da condição de mulher-goiabada, [que é] a mulher caseira, antiga ‘rainha do lar’ que sabe fazer a melhor goiabada no tacho de cobre”. Ela decidiu que seria advogada por causa do pai, que também se formou na São Francisco. Para custear os estudos, começou a trabalhar na Secretaria de Agricultura. Seu segundo livro, Praia Viva, saiu em 1944, um ano antes de seu bacharelado. Em 1949, três anos depois do término do curso de Direito, a escritora publicou, pela editora Mérito, seu terceiro livro de contos, O Cacto Vermelho, o qual recebeu o Prêmio Afonso Arinos da Academia Brasileira de Letras. 

(Fonte Wikipedia)

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