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Um tal Júlio, por Victor Nouz

Um tal Júlio, por Victor Nouz

“Dedicado ao escritor argentino Júlio Cortázar que nos deixou em 1984. Sem ao menos perguntar se podia.”

Às vezes me ocorre pensar nestas coisas assim, querido amigo Júlio, meio sem propósito, só por pensar. E isso sempre acontece quando começo a escrever, mentalmente, aquela carta que deveria ter lhe escrito antes da sua inesperada partida. Está me acontecendo precisamente agora quando machuca recordar dos velhos tempos. E ela, num gesto breve, pede outro cigarro de tantos, depois de nos deixarmos ficar sem pressa, deitados de barriga para cima no colo dessa penumbra cúmplice que nos abraça. Meio que gatos suados enroscados e ronronando numa redoma de silêncio congelado, impregnando os lençóis com nossos sabores e cheiros, aceitando esse abandono distraído, aceitando essa continuidade preguiçosa que nos acalenta depois do sexo. Observo na penumbra a mão dela levando o cigarro até a boca, a brasa se fazendo luzinha vermelha entre os dedos no aspirar a fumaça, e recuso acreditar que essa mão tenha sido a mesma que momentos atrás, feito um gatinho delicado de dedinhos finos, fazia cosquinhas suaves aninhando-se nos pelinhos do meu peito. Gostei, afirmo, sem dúvida. Mas o movimento, esse movimento do depois quando ela me encara nos olhos e penso nestas coisas… e pensando, escrevo, isto incomoda.

Nããão!… Não!… Por favooor!… Não menospreze você que nos lê, o que escrevo de cabeça relembrando Júlio, como se isso fosse algo menor, um mero ato mecânico das sinapses no cérebro estimulando o mover fibras, músculos, respondendo a estímulos elétricos, nervos, o que me oprime. Perceba que é outro algo, outro instante, outro maior do que apenas um gesto que se extingue num aperto de mão ou num beijo de língua. É essa alguma coisa transitória que nos impõe uma escolha forçada e, ato sumário, determina o falso contido nesse viver tateado, onde é dever implícito olhar cegamente a árvore na ponta do nariz em detrimento da floresta.

Tranquilo! No pasó nada. Estoy seguro que estás muerto, Júlio.

Por isso mesmo penso nestas coisas assim, sem que ela deitada ao meu lado se dê conta, agora que me é tão claro, tão cristal e vejo inteiro nela como Júlio também veria. E não pergunte então você que nos lê, o porquê do pensar nestas coisas quando o cotidiano está todo feito de lugares assegurados, etiquetas de A a Z todas prontinhas, envelopes arrumadinhos, toalhas limpas. Não pergunte também se é para esconder a saudade de Júlio que penso nestas coisas enquanto passo a mão suavemente, bichinho caçador, separando coxas úmidas, e ela voz excitada não faz assim, espere um pouquinho, deixe-me ao menos terminar o cigarro. Mesmo escondendo a sensação do falso, aquilo do pensar nestas coisas se agita todo mostrando olhos enormes à beira da cama, pronto a atirar-se sobre mim e pôr um fim nesta estória talvez mal contada.

Fue escrito en las estrellas, pibe.                                                                                                                                        

E deitado agora sobre ela abrindo coxas, preparando galope, acariciando suave o animalzinho todo pelos que se rende tímido entre suas pernas, sentindo a respiração dela arfando forte no meu rosto e nossos corpos tremendo docemente e, cuidado, devagar, e sigo sem penetrar, só desejo meu e dela úmidos, com sede, agora sim já, e é quando gostaria que fossemos um, amigo meu. E que ela entendesse o pensar nestas coisas e lhe espetasse espinhos com força no pescoço até que não mais…

Seria bom, Júlio, mas ela não chega a ser Sula. Porque Sula é assim apenas como um acontecer por instantes quando essa ela que agora geme, se ausenta, baixa a guarda, esquece de pegar a vida para etiquetar e enfiar no freezer, descongelar e enfiar no freezer, descongelar e mais uma vez enfiar, assegurando-se que detém o controle ou está sendo controlada tanto faz.

Vos sabes lo que quiero decir, viejo.

E ainda que o vácuo entre nós não se congele porque tem o calor, o cotidiano por sua vez se faz em pedaços caindo inapelavelmente sobre esse jeito dela meio pedra, esse jeito dela arquivo-freezer-etiquetas, esse jeito dela meio onda lavando areia descobrindo cascalho, indo e vindo.

Então o pensar nestas coisas, Júlio, é passar a conhecer uma Sula quase imperceptível apesar de andar grudada nessa ela todo o tempo. Coisa que nem eu tampouco me dei conta quando tempos atrás, naquela tarde de sol deliciosa, entrei na sala da assessoria de imprensa e lá estava ela, vestidinho amarelo colado no corpo e usando tênis verde, um metro e meio de puro tesãozinho. Um olhar foi o bastante para me atrair feito um ímã. Sem que eu soubesse que era Sula, não essa ela, por trás daquele sorriso lindo entre olás, muito prazer, interessante, somos vizinhos e não sabíamos, anote o número do telefone, beijos, foi bom te conhecer, vamos jantar nesta quinta? Foi bom o conhecer, porque foi um conhecer ainda sem arquivos-etiquetas-fulano-beltrano e sicrano em tal horário, ali, acolá. Essa outra ela me apresentou Sula sem querer.

Mas isso se deu num outro instante porque neste agora aproveito este outro momento, aproveito que ela nos abraça e nos beijamos línguas que se enroscam, murmúrios, aproveito e percebo esta outra mulher por baixo dos gemidos, da falta de fôlego, do quase orgasmo; aproveito e sinto, porque mesmo agora dentro dela, indo e vindo, sei que ainda não é Sula. Mas se gozamos o que importa?

Até quando os rótulos e quantas vezes mais o ritual, prezado Júlio, feito de símbolos formados, limbo, todos grudados no relógio, sempre respondendo com movimentos postiços de ponteiros se fazendo de palavras que não saem. É o rigoroso tiquetaquear na minha cara segundos e minutos como se eu não entendesse, como se você não me houvesse mostrado nos seus contos, camarada. Como se eu não tivesse feito a viagem, percebendo a brincadeira do tempo, os símbolos e os jogos em todas as suas formas, congeladas e engessadas no fundo do poço. Digo a ela que não é preciso ser sempre assim, viver empilhando essa roupa suja na porta do armário da vida. E ela responde mastigado que é assim que deve ser, preferindo a margem segura, a superfície lisa e indolor, o cheiro familiar secando os respingos de realidade mofada, cuidando para não molhar os pés ressecados de lugar comum.

Eu continuo pensando nestas coisas e escrevendo de cabeça, como sempre, a carta que deveria ter escrito de verdade antes de você partir, prezado Júlio. Escrevo mesmo agora quando ela levanta e se dirige ao banheiro, deixando a porta entreaberta de propósito e liga o chuveiro, sente a temperatura da água e nem ouve quando digo pra não molhar os cabelos que é tarde e dormir de cabelo molhado… “Aaaatchiiim!!!!… Saúde!!!… Obrigada!!!”, responde ela, olhinhos fechados, saboreando o prazer da água morna lambendo gulosamente coxas e peitinhos. Da cama, percebo que não há o que temer. Essa ela também é Sula, vai e volta, como a espuma-sabão-água morna que escorre misturada ralo afora, seguindo seus próprios destinos-encanamentos-esgotos e dando lugar ao amanhã de outras espumas-sabões-águas mornas, onde Sula não é melhor nem pior. Só que é feita de realidades, diferente dessa ela que se banha cantarolando.

!Puta madre, hermano! Vos sabes cómo funcionan estas cosas.

Que tudo não passa de um pequeno painel quebra-cabeças de possibilidades fantásticas, novos olhares, novelo de cores fortes e frescas que desenrolo, enquanto enrolo o corpinho dela nesta toalha, já que veio deliciosamente pelada do banheiro.  

Aqui, um quase fim. É ela me dizendo um “te vejo depois”, feito de boquinhas miúdas e longos cabelos negros cacheados, mão delicada escancarando o portão da vida. Ela garantindo que precisa retornar ao hospício, à moldura. E num último olhar antes de sair, num ligeiro triscar de olhos quase castanhos, percebo que ela respira fundo e faz uma pausa como se tomasse cuidado. Faz uma pausa como se tentasse adiar o congelar de vez dentro do cárcere das aparências, lutando para não assumir de pronto a rigidez cadavérica do dia a dia, querendo evitar a todo custo o sorriso treinado em virar fóssil petrificado na boca que também é de lábios quentes e língua-cobra. Mesmo sentindo a proximidade do mumificar perfumado do cotidiano trazendo um cheiro podre feito de carros importados e cartões de crédito, mesmo assim, desta vez ela resistiu por instantes e fez diferente, deixando Sula aqui comigo quando saiu. E se ela deixou Sula, Júlio também ficou. O que não nos surpreende em nada.

Coisa do tipo sempre acontece toda vez que me ocorre pensar nestas coisas assim, só por pensar, antes de começar a escrever. O que ainda fazemos juntos, Júlio e eu. Do mesmo jeito, num cara a cara, lado a lado, unha e carne, assim, feito agora, feito lembrança na forma desta carta jamais escrita de verdade. Ainda escrevemos juntos como se a morte fosse apenas uma sombra passageira entre nós. Sombra fugaz embrulhada em papel machê; murmurar de um fantasma que não nos assusta. E sempre será assim quando eu começar a escrever. Sempre nos reconhecendo em cada linha, sentindo no rosto o frescor de cada sentença, entrando nus em cada parágrafo, intrusos hesitantes num novo mundo repleto de sinais trocados e frases ainda não pensadas, coisas que você me ensinava em cada conto, Júlio. Seus textos são verdadeiros rios de serpentes nos revelando este teu jeito Júlio, este teu lado tchê, este teu modo Cortázar de ser imortal, maneira sua ondulante de escrever a vida nos apresentando outras vidas… Por que partiu sem ao menos nos perguntar se podia, cara?

?La mierda se hizo lo que podemos hacer, boludo?

Parece ser uma justificativa banal e medíocre. Mas me acontece assim toda vez que penso nestas coisas, a pretexto surreal de querer cruzar a linha dos mortos e rever Julio, escrevendo Cortázar. Culpa do maldito rio que nos obrigam a atravessar para sempre se quisermos rever um amigo do outro lado da margem. Que seja! E que o grego Caronte nos reviste buscando suas moedas quando a nossa hora chegar. Um “carajo” que isto me importa, Júlio! Importa é saber que você continua aí, agora aqui, ali, em qualquer lugar, aqui outra vez. Certamente também pensando nestas coisas assim, só por pensar, permitindo-se reviver neste improviso escrito só de passagem, mantendo-se presente nesta estória indolor mesmo que provisória, assumindo despudorado cada frase saudosa como uma nova maneira de sentir, apesar de morto.

Juro que quase posso vê-lo coçando a barba, subindo no nariz os óculos grossos, tirando baforadas do milésimo cigarro e aceitando resignado a tosse que o acompanha. O vejo encarando esse meu novo texto com um sorriso doce e ares que remetem saudosos nossas caminhadas, as noites, as ruas de Buenos Aires, sorvendo do aroma dos Cafés tão portenhos, tão nossos. Onde bebíamos madrugada adentro como amigos e ríamos como personagens de contos antigos, conversando e depois escrevendo a vida fictícia que passava. Quase posso ver você, sentado à sombra num canto do pátio entre um tal Lucas e a Glenda a quem tanto queremos, erguendo a sobrancelha e sorrindo de um trecho que gostou, dando de ombros bem-humorado; seguido de mais um gole do mate que sempre cai bem depois do assado e depois umas “canas” que ninguém é de ferro. Age como se nada lhe tivesse acontecido ou lhe dissesse respeito, como se todo este escrito não passasse de postiços sem significado num repertório já mofado pelo desuso. Parcos símbolos desvanecendo na manhã se espreguiçando e acordando em tons de cinza-dourado. E nem bem ela esfrega a cara na vidraça do quarto me vem o sono. Essa espécie de morte aparente onde morremos todos os dias, tal como você escreveu uma vez…

Perdóname, Júlio, hermanaço, mas me veio o sono.

E a sua vida, sua morte, sua escrita, estas coisas que nos lembraram dos velhos tempos até agora, se aconchegam gentis na beirada da cama olhando para mim. E agradecidas (também lhes agradeço), mui respeitosamente me aguardam fechar os olhos, dormir e sonhar que lhe escrevo. É inevitável. Essas boas recordações aparecem e somem assim toda vez. Me basta pensar. E pensando, me vejo de novo escrevendo sobre estas coisas silenciosas que chegam bem devagarinho, exalando seus cheiros doces, disfarçando os sabores amargos.

E estas coisas fazem isto de maneira tão única, segura, tão pensada e sutil, revelando-se tão intensamente que, às vezes, até mesmo a própria realidade que vem junto com elas, tem dificuldade de se fazer presente. 

Por isso, se por acaso, você que nos lê, abrir a porta da rua e der de cara com uma realidade nua e crua, desolada, sem rumo, convide-a para entrar, deixe que se sente, não diga nada, pegue logo uma garrafa e abra um livro.

Por vezes, tudo o que a realidade precisa de verdade, são algumas boas doses e um ou outro pedacinho de ficção para saborear. Basta isso! É um santo remédio. Simples assim.

Piscou um olho, a realidade já é outra.

SOBRE O AUTOR

Victor Nouz. Brasileiro, paulistano da Mooca, São Paulo, Capital. Há mais de 30 anos mora em Fortaleza, Ceará. Roteirista há mais de 10 anos, escreve Argumentos e Roteiros para minisséries, curtas e documentários. Publicitário, somando mais de 35 anos de bagagem criativa. Primeiro como Redator e depois como Diretor de Criação em grandes agências. Autodidata em Literatura, escreveu contos durante anos apenas como entretenimento para os amigos.

CASA TOMADA, DE JÚLIO CORTÁZAR

Este conto de Cortázar foi criado em 1946. Inicialmente ele foi reproduzido no veículo intitulado Anales de Buenos Aires, produção do escritor argentino Jorge Luis Borges, e posteriormente figurou ao lado de outras histórias de Julio na obra Bestiário, lançada em 1951.

 

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